Chroma Engenharia
Por Vasco Fleury
25 de outubro de 2016
9 min. de leitura

UHE Santa Isabel: A história real da devolução da Concessão

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É fato conhecido no Setor Elétrico Brasileiro a devolução amigável da Concessão do Aproveitamento Hidrelétrico – AHE Santa Isabel (1.087 MW), localizado no Rio Araguaia, municípios de Palestina do Pará – PA e Ananás – TO. A mesma foi formalizada através de Rescisão Contratual assinada entre o Consórcio GESAI e o Ministério de Minas e Energia – MME, em janeiro de 2014.


CONSÓRCIO GESAI

O Consórcio GESAI – Geração Santa Isabel foi constituído em 2002 pelas empresas Alcoa Alumínio S.A., BHP Billiton Metais S.A., Vale S.A., Camargo Corrêa Geração de Energia S.A e Votorantim Cimentos S.A., com vistas à celebração de contrato de concessão do AHE Santa Isabel, uma vez que foi o vencedor do Leilão promovido pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL,  em novembro de 2001.

 

PREÂMBULO

Antes de começarmos a contar a história real da devolução desta Concessão, cabe o esclarecimento de dois pontos, quais sejam:

  • O Contrato de Concessão foi firmado em abril de 2002 na vigência de marco regulatório que tinha como critério de julgamento do Leilão o maior valor oferecido pelo Uso do Bem Público – UBP e permitia a licitação sem a emissão da Licença Prévia (LP) pela autoridade ambiental, exatamente o que ocorreu no caso do AHE Santa Isabel.
  • Aquele marco regulatório, que chamaremos aqui de “velho modelo”, foi profundamente alterado em seus principais pilares com a promulgação da Lei nº. 10.848/2004, a qual modificou substancialmente a conformação jurídica e institucional do Setor Elétrico Brasileiro. No atual modelo, os empreendimentos de geração somente são licitados após a emissão da LP pela autoridade ambiental e o critério de julgamento do Leilão é pela menor tarifa de energia elétrica ofertada no Ambiente de Contratação Regulada (ACR), com o valor do UBP fixado para cada empreendimento.

 

HISTÓRICO DO AHE SANTA ISABEL

Isto posto, vamos a história real da devolução da Concessão do AHE Santa Isabel, ressaltando que se trata de uma longa história que começou em 1972, com o início dos estudos, e culminou com a devolução da Concessão em janeiro de 2014. Portanto, listaremos a seguir apenas os fatos considerados relevantes neste processo.

  • Em 1972, a ELETROBRÁS iniciou os Estudos dos Potenciais Hidrelétricos dos Rios Tocantins e Araguaia, que posteriormente, em 1975, foram concluídos pela ELETRONORTE.
  • Entre 1981 e 1987, a ELETRONORTE desenvolveu o Estudo de Viabilidade e Projeto Básico para o AHE Santa Isabel, definindo a potência de 2.245 MW, com o NA do reservatório na cota 150 m, resultando em uma área alagada de 2.944 km2.
  • Com o decorrer dos anos e a não concretização da implantação deste empreendimento, houve a necessidade de revisão deste projeto em função do crescimento populacional na região.
  • Os estudos foram retomados entre 1988 e 1989, com definição de novo NA para o reservatório, transformando o empreendimento em uma Usina a fio d’água, agora na cota 125 m, com área alagada de 248 km2 – dos quais 102 km2 pertencem a calha do Rio Araguaia -, e potência instalada de 1.087 MW, permanecendo o mesmo posicionamento do eixo do barramento.
  • Em 07 de dezembro de 2001, foi publicado no Diário Oficial da União – DOU que o GESAI havia sido o vencedor do Leilão promovido pela ANEEL para a exploração da Usina Hidrelétrica UHE Santa Isabel – 1.087 MW.
  • Ainda no mês de dezembro de 2001, foi iniciada pelo GESAI a fase de desenvolvimento das atividades necessárias à obtenção da LP junto ao IBAMA, uma vez que o AHE Santa Isabel foi à Leilão sem a LP, em conformidade com o “velho modelo”, bem como iniciadas as atividades preliminares necessárias ao início das obras, que estavam programadas para serem iniciadas no primeiro trimestre de 2003, após a emissão da Licença de Instalação (LI).
  • Em 30 de julho de 2002, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA encaminhou ao GESAI um Ofício informando que, após vistoria nas áreas de influência abordadas no Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA, parte componente do Edital de Leilão, foram elaborados relatórios concluindo pela inviabilidade do empreendimento.
  • Após diversas tentativas junto ao IBAMA e ANEEL de reconsideração desta decisão, em abril de 2003 as atividades foram totalmente interrompidas e o GESAI começou a estudar alternativas para devolução da Concessão e garantias contratuais junto à ANEEL.
  • Em janeiro de 2008, o GESAI resolveu pela retomada do Projeto, após quase cinco anos de negociações com o Governo Federal e ANEEL e promessa das instituições governamentais de avaliar o pleito do GESAI de enquadramento do AHE Santa Isabel na modalidade “botox”, válida para aquelas Usinas cuja energia ainda não havia sido comercializada por falta da emissão da licença ambiental, visando a um futuro enquadramento no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
  • A partir de então o GESAI retomou as negociações com o IBAMA, o qual emitiu o Termo de Referência (TR) para elaboração do EIA/RIMA do AHE Santa Isabel, em fevereiro de 2009, com exigência da execução de quatro campanhas, que deveriam ser consolidadas em um novo EIA/RIMA, e não mais a simples complementação do EIA/RIMA existente, o qual havia sido parte integrante do Leilão.
  • Em dezembro de 2009, mesmo sem o cumprimento pelo Governo Federal da promessa de enquadramento das Usinas licitadas no “velho modelo” em Usinas “botox”, foi promulgada a Lei nº. 12.111/09 (com a manutenção do artigo 25 da Lei nº. 11.488/07), que estipulava a data de 15 de junho de 2012 como limite para o início do pagamento mensal do UBP, sem qualquer ressalva protetiva às Usinas licitadas no “velho modelo”, as quais não poderiam ingressar em operação até junho de 2012, por não terem conseguido a LP, por motivos imputados exclusivamente ao IBAMA.
  • Mesmo assim, procurando empregar toda a diligência cabível visando à obtenção da LP, o GESAI deu continuidade aos trabalhos e, em março de 2010, protocolou no IBAMA o novo EIA/RIMA do AHE Santa Isabel, em conformidade com o TR emitido pelo IBAMA.
  • Nesta ocasião, o IBAMA informou ao GESAI que para a análise efetiva do novo EIA/RIMA deveria aguardar a conclusão dos estudos de Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da Bacia Hidrográfica do Rio Araguaia para que os processos de licenciamento dos empreendimentos constantes nesta Bacia Hidrográfica pudessem ser retomados. A mencionada AAI estava sob a responsabilidade da Empresa de Pesquisa Energética – EPE.
  • Em dezembro de 2010, sem o EIA/RIMA aprovado pelo IBAMA e com a obrigação de pagamento do UBP a partir a junho de 2012, só restou ao GESAI protocolar carta na ANEEL, enfatizando o desequilíbrio econômico-financeiro da Concessão e o impasse causado pelo enorme atraso no licenciamento ambiental do Projeto, decorrente de manifestações e posturas imputáveis exclusivamente ao IBAMA, requerendo do Poder Concedente a recomposição da economicidade da Concessão.
  • Ainda no ano 2010, a EPE concluiu a AAI da Bacia Hidrográfica do Rio Araguaia, a qual apontava para a viabilidade de implantação da UHE Santa Isabel, entre outras.
  • Em março de 2012, após várias negociações e complementações ao EIA/RIMA solicitadas pelo IBAMA, o Instituto informou ao GESAI que o EIA/RIMA se encontrava apto para a disponibilização e realização das audiências públicas.
  • Em abril de 2012, a Diretoria Colegiada da ANEEL deliberou sobre o pleito do GESAI, de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do AHE Santa Isabel, recomendando ao Poder Concedente o reequilíbrio da concessão, através da adequação do prazo de pagamento do UBP, ao termo em que a operação fosse efetivamente iniciada, e autorizando um novo prazo de concessão de 34 (trinta e quatro) anos, a partir da data de emissão da LP pelo IBAMA.
  • Durante o mês de maio de 2012 foram distribuídos os volumes do EIA/RIMA a todos os órgãos e municípios listados pelo IBAMA que deveriam participar das Audiências Públicas. As Audiências Públicas não foram realizadas devido ao processo que tramitava junto ao Poder Concedente referente ao reequilíbrio da Concessão.
  • Em 14 de junho de 2012, na véspera da data limite para o primeiro pagamento mensal do UBP, em função da ausência de resposta formal quanto à recomendação  da ANEEL de reequilíbrio da Concessão do AHE Santa Isabel por parte da Secretaria de Tesouro Nacional – responsável pela análise da adequação do prazo de pagamento do UBP -, e do MME – responsável pela Concessão -, o GESAI em conjunto com outros empreendimentos em situação similar, através da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia – ABIAPE e Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica – APINE, protocolaram na Vara Federal do Distrito Federal Ação Ordinária com Pedido de Tutela Antecipada, a fim de suspender o pagamento do UBP a partir de 15 de junho de 2012, para as UHE’s Murta – 85 MW, Itaocara – 195 MW, São João – 60 MW, Cachoeirinha – 45 MW, Pai Querê – 292 MW e Santa Isabel – 1.087 MW.
  • Em 02 de julho de 2012, o Juiz Federal da 7ª Vara suspendeu a exigência do “pagamento pelo uso do bem público” para os referidos empreendimentos.
  • Em 18 de dezembro de 2012, o plenário do Senado aprovou o Projeto de Lei de Conversão (PLC) à “famosa” Medida Provisória (MP) 579, que prorrogava as concessões do setor elétrico e reduzia a conta de luz a partir do início de 2013, tratando, no seu Artigo 31, do restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro das concessões de geração de energia elétrica outorgadas no “velho modelo” e que ainda não tinham suas obras iniciadas em razão de comprovados atos ou fatos alheios à atuação ou gestão dos concessionários (exatamente o caso do AHE Santa Isabel, entre outros).
  • No dia 11 de janeiro de 2013, a Presidência da República sancionou a Lei 12.783, com seis vetos ao PLC da MP 579, entre os quais o Artigo 31.
  • Após intensas negociações com o Governo Federal no sentido de tentar viabilizar as Usinas licitadas no “velho modelo”, foram incluídos dois artigos na MP 605 – que regulamentava o uso dos recursos da Conta de Desenvolvimento Energético para garantir a redução da conta de luz anunciada pelo Governo Federal na “famosa” MP 579 -, quais sejam: (i) regulamentar a recomposição do prazo de concessão, a partir da emissão da LP, e (ii) permitir a rescisão do contrato de concessão, de forma amigável, em prazo de 30 dias da publicação da Lei, para as concessões que estivessem adimplentes e fizessem a opção pela devolução da Concessão.
  • Em 28 de maio de 2013, a MP 605 foi aprovada na Câmara dos Deputados.
  • No dia 10 de julho de 2013, foi publicada a Lei nº 12.839, que incorporou na íntegra a MP 605. O artigo que tratava da questão do restabelecimento do prazo de concessão a partir da emissão da LP, foi integralmente vetado pela Presidência da República, e o artigo que regulava o processo de devolução da concessão de forma amigável foi mantido na íntegra.
  • No dia 05 de agosto de 2013, somente quatro dias antes do prazo final para o exercício do direito de devolução amigável da Concessão, de acordo com a Lei nº 12.839, foi publicado no DOU o Despacho do Ministro de Estado de Minas e Energia indeferindo o processo administrativo do GESAI, referente ao reequilíbrio da Concessão.
  • Desta forma, esgotadas todas as tratativas para o restabelecimento do equilíbrio econômico da Concessão do AHE Santa Isabel, o GESAI requereu a rescisão amigável do Contrato de Concessão, nos moldes previstos na Lei nº 12.839.
  • Por fim, o Termo de Rescisão do Contrato de Concessão de Uso do Bem Público para Geração de Energia Elétrica Nº. 22/2002 – ANEEL – AHE Santa Isabel teve seu extrato publicado no DOU em 31 de janeiro de 2014.

 

REFLEXÕES

Essa é uma história que deveria, mas infelizmente não pôde ter um final diferente, porém serve como exemplo, entre tantos outros, da ingerência das instituições governamentais na última década, as quais deveriam ter viabilizado empreendimentos de extrema relevância para o Setor Elétrico, como é o caso da UHE Santa Isabel, e não fizerem nenhum esforço para tanto.

Vamos finalizar deixando aqui duas reflexões sobre este caso:

  • É necessária uma discussão aprofundada para definição de um protocolo normativo global para o licenciamento ambiental de empreendimentos de infraestrutura no Brasil em linha com os interesses do País, pois não se pode admitir que instituições governamentais que aprovaram um EIA/RIMA, que fez parte de um Edital de Leilão patrocinado pelo próprio Governo, logo depois de ser assinado o Contrato de Concessão entre as partes, passem a negá-lo inviabilizando o empreendimento, como foi o caso do AHE Santa Isabel, aqui relatado.
  • É imprescindível que tenhamos regras bem definidas e duradouras para a atração de capital privado de longo prazo, baseadas em uma política consistente para o Setor Elétrico, que possa ser de alguma forma independente de interesses governamentais que exerçam o poder temporariamente, e não marcos regulatórios que são substituídos a cada novo governo, ao “sabor” dos projetos políticos de plantão.

Caso seja de seu interesse, entre em contato conosco para aprofundarmos este assunto e trocarmos algumas ideias a respeito.

Até a próxima!

 

 

5 Responses to UHE Santa Isabel: A história real da devolução da Concessão

  1. Celso Castilho de Souza disse:

    Muito bom o texto, mostrando a realidade dos fatos. Lamentavel que o Pais, tenha deixado escapar a consecucao de um projeto dessa magnitude.

  2. Romulo Ciarlini disse:

    Excelente artigo Vasco Fleury. Parabéns pela lucidez na análise.

    • Chroma Engenharia disse:

      Obrigado Rômulo,

      Espero que este novo governo (MME/EPE) tenha a coragem de colocar o AHE Santa Isabel no Plano Decenal de Expansão e fazer um novo Leilão…vamos ver.

      Abs,

      • Esperemos de fato por um “novo” governo. Neste do Temer não tenho absolutamente nenhuma confiança.
        É um marionete, conduzido por políticos inescrupulosos.
        Forte abraço,
        Rômulo Ciarlini